terça-feira, 27 de maio de 2008


Quando todos compreenderem claramente como eu, escreverão. A vida será impregnada de literatura. Metade da humanidade consagrar-se-á a leitura do que a outra metade terá escrito. E o recolhimento ocupará o melhor tempo que será por isso arrancada à verdadeira e horrível vida. E se uma parte da humanidade se rebelar e se recusar a ler as meditações dos outros, tanto melhor. Cada um se lerá a si mesmo.




Italo Svevo

Um ligeiro peso na consciência


A glória de Italo Svevo passou como um cometa entre as constelações literárias do século XX. Aaron Ettore Schmitz, este seu nome civil, descendente de judeus austríacos de língua alemã, tinha nascido em 1861 em Trieste, então o grande porto da Áustria - cidade da civilização italiana no meio das gentes eslavas. Na juventude, já sob pseudônimo, escreveu dois romances Uma Vida e Senilidade (título esquisito em escritor tão jovem), passaram despercebidos. Voltou a ser Schmitz e comerciante abastado. Anos depois, sobreveio a primeira guerra e uma doença visual, seu comércio foi a falência, mas não o desejo de ser escritor. Nestas circunstâncias renasce Italo Svevo, agora com o propósito de descrever a consciência do moderno homem ocidental – ou o que o homem pós-psicanálise entendia por consciência. Fez isso e obteve um clássico, o primeiro da literatura moderna. Na verdade A consciência de Zeno, sua obra-prima, é a descrição de um fracasso, ou de um ideal fracassado. Ao mesmo tempo é um romance sutilmente humorístico. Zeno Cosini é neurótico. É abúlico. Quer, mas não pode deixar de fumar. Procura o psicanalista, que lhe manda escrever a história de sua vida. Ei-la. É a vida de um homem comum, ligeiramente ridículo e trapalhão (às vezes lembra Charlie Chaplim), mas bastante esperto para viver comodamente, sem se cansar demais em trabalhar, e para manter-se precariamente equilibrado em situações duvidosas quando assim lhe convém. Casou com Augusta, engana-a com Carla e depois engana Carla com Augusta. Tem os melhores propósitos, “mas são bons demais para serem imperativos”. Cada cigarro que fuma será o último. Também sairá com Carla, hoje, pela última vez, mas se a encontrar, porventura, mais uma vez, será esta a última. Não se ilude quanto a dubiedade destas situações, e essa vida dupla o torna neurótico. Por isso procurou o psicanalista. Mas não quer ficar curado: pois a neurose, meio cínica e meio pervertida, é como o navio em que continua saindo para o mar da aventura – e voltando, no fim do dia, para o porto da mediocridade segura. Essa existência, um tanto tragicômica, nem sempre será afetada pela realidade, um tanto evanescente, da consciência de Zeno. Antes da psicanálise, o mundo ocidental havia aprendido com a espiritualidade judaico-cristã que a consciência era uma voz interior - que todavia vinha de fora, ou seja, a transcendência na imanência - com a qual travávamos um diálogo. Depois da psicanálise a consciência perdeu essa referência transcendental, e tornou-se um simples eco de nossos desvairados monólogos íntimos – que não implicam em nenhum julgamento de valor – apenas monólogos. Deste ponto de vista o romance de Svevo é obra sui generis, pois o que ele pretendia era uma propaganda da psicanálise, mas sem querer acabou construindo uma crítica mordaz. Uma consciência sem um respaldo metafísico é uma impostura, ante a qual qualquer um torna-se um impostor. Ninguém sabe isso melhor que o psicanalista do livro. Zeno fala na primeira pessoa como personagem de um romance picaresco; aliás, A consciência de Zeno é mesmo o romance picaresco da psicanálise, onde parte da confissão é ou pode ser verdade. Mentira e verdade aparecem inextricavelmente misturadas. Nunca saberemos quando Zeno é ele próprio, quando acredita ser ele próprio, quanto nos quer fazer acreditar que assim é ele próprio. São as três dimensões que caracterizam a realidade de uma consciência avessa a qualquer paradigma espiritual. Zeno é tão real porque não passa de uma ficção inventada por ele mesmo. Como Juvenal, Svevo diria: “la realità può talvolta farsi satira con la sola precisione (a realidade pode às vezes tornar-se sátira mediante a simples precisão)”. Homens fracassados na realidade como Zeno ou fracassados na imaginação Svevo não castigam ninguém. Mas seu sorriso é amargo. Ele se perguntava se não estaríamos, todos nós, infinitamente solitários em companhia com a nossa consciência? Eu digo que não, pois a verdadeira consciência sempre enseja diálogo, invariavelmente humilde, e um não monólogo, invariavelmente egoísta. Mas para cada um, de fato, chega a hora em se sente surdo e mudo neste vale de lágrimas, e só uma voz que está em nós, mas que não é a nossa, pode novamente nos fazer falar, e entender. Italo Svevo só admitiu isso inconscientemente e assim nos proporcionou no fim de sua vida dolorosa esse espetáculo raro: o sorriso de um homem velho.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Da série: qualquer semelhança não será mera coincidência!

Desenho de Leopold Bloom feito por Joyce em Trieste (1911)

Leopold Bloom, é um das personagens mais deslumbrantes já concebidas pela imaginação humana. Talvez ele seja uma das poucas coisas agradáveis que encontramos à primeira leitura de "Ulysses". Indiferente à religião e à política, desprovido de ambição, "Poldy" (como é carinhosamente conhecido) é prudente, comedido, levemente pessimista, mas não infeliz. É imune a ira, ao ódio, à inveja, à malícia e, acima de tudo, é gentil e generoso com todos. Trata-se da pessoa mais sensata e humana da literatura joyceana, só comparável ao admirável Tio Toby, de Tristan Shandy, romance de autoria de Laurence Sterne que Machado de Assis adorava. Mas o que quase ninguém sabe é que Leopold Bloom realmente existiu e foi um dos melhores amigos de James Joyce, que o conheceu na cidade italiana de Trieste onde, para sobreviver, dava aulas de inglês. Muito se tem especulado porque Joyce escolheu como herói de sua Odisséia um judeu. Existe até uma teoria sobre a origem fenícia, semítica, da epopéia. Todavia isso não explica por que a personagem Leopold Bloom era um judeu oriundo da Europa central. Ora, a explicação é muito simples: Bloom era judeu porque Italo Svevo era judeu, ou seja, Leopold Bloom e Ítalo Svevo são a mesma pessoa. Isto foi dito pelo próprio Joyce, que no ano de 1911 conheceu Svevo, quando este se inscreveu no seu cursinho de inglês. Foi uma amizade instantânea e eterna. Cada um dos dois aprendeu muito com o outro. Svevo, que até então era um escritor ignorado, encontrou em Joyce seu leitor mais entusiástico, que acabaria até bancando a publicação dos seus primeiros romances. E Joyce além de descobrir nele uma nova forma de escrever, acabou encontrando seu personagem mais notório. E assim repetiu-se a eterna mímesis que existe entre a vida e a arte.

domingo, 25 de maio de 2008

Trinta anos esta noite!...


Eu sempre fui avesso a aniversários. Não se pode negar o peso que existe em trocar de idade. Não há como evitar o fatídico balanço anual, que não examina apenas o último ano de vida, mas a vida inteira, mais ou menos parecido com aquele que se faz no reveillon. E a criatura mais impiedosa nesta avaliação é invariavelmente o aniversariante, que insiste em focar nos tropeços e esquece dos saltos bem-sucedidos. Há se ter foco nos tropeços sim, mas de forma a traçar estratégias para que eles não mais aconteçam. Só que a grande vantagem de se fazer aniversário é que não importa o quanto você seja exigente consigo, seus amigos estão por perto para amenizar o peso da bigorna Acme que lhe cai sobre a cabeça. O carinho das mensagens, os abraços, a felicidade de estarem com você, longe ou perto, dizem uma coisa muito importante: você tem bons amigos e a gente é tão bom quanto os amigos que tem.


Muito obrigado a todo mundo que deixou scrap, comentários, ligou, bateu à porta. Senti o abraço de todos vocês. E foi bom.

terça-feira, 20 de maio de 2008


"Quem acende uma luz é o primeiro a beneficiar da claridade."


G. K. Chesterton

Um Escritor Peso-Pluma


Gilbert Keith Chesterton (1874-1936), é um gigante da literatura, e digo isso nos dois sentidos, pois ele media 2,10 de altura e pesava 140 kg. Portanto não é o tipo de escritor que pode ser resumido numa frase, tampouco num parágrafo. Apesar de se terem escrito excelentes biografias sobre ele, nunca foi realmente “capturado” nas páginas de um livro. Mas, isso não impede de dizer extamente quem ele era. Para começar, Chesterton foi o melhor escritor do século XX. Teve algo a dizer sobre todos os assuntos, e disse-o melhor do que ninguém. Não era, porém, um mero fraseólogo: sabia expressar-se muitíssimo bem, mas – o que é mais importante – também tinha coisas muitíssimo boas para expressar. Pois a razão pela qual foi o maior escritor do século XX é que foi o maior pensador do século XX. Nascido em Londres, Chesterton estudou no Saint Paul’s College, mas não freqüentou a Faculdade, e sim a Escola de Artes. Em 1900, pediram lhe que escrevesse uns artigos de crítica de Arte para uma revista, e partindo daí acabou por tornar-se um dos mais prolíficos escritores de todos os tempos. Chesterton escreveu uma centena de livros, contribuições para outros duzentos, centenas de poemas, incluindo o épico Ballad of the White Horse, cinco peças de teatro, cinco romances e uns duzentos contos, incluindo a popular série sobre o Padre Brown, o padre detetive. Sua literatura era exatamente como ele: pra mais de metro!... Chesterton movia se com igual desembaraço em crítica literária ou social, História, Política, Economia, Filosofia e Teologia. O seu estilo é inconfundível, sempre marcado pela humildade, pela consistência, pelo paradoxo, pela sagacidade e pelo encanto. Os seus escritos continuam tão atuais e permanentes como no momento em que surgiram, apesar de muitos deles terem sido publicados pela primeira vez em jornais há cem anos atrás. O homem que compôs frases tão perfeitas e profundas como "Não é que o ideal cristão tenha sido testado e considerado insuficiente; foi considerado difícil demais e deixado de lado sem testar" ("The Christian ideal has not been tried and found wanting; it has been found difficult and left untried"), passeava usando uma capa, um chapéu amarrotado, minúsculos óculos na ponta do nariz e uma bengala na mão, soprando alegremente o seu bigode. E quase sempre não tinha a menor idéia de onde ou quando era o seu próximo compromisso. Boa parte dos seus escritos foram elaborados em estações de trem, pois ele costumava perder o trem que devia tomar. Esse distraído, enorme e travesso homenzarrão, que ria das suas próprias piadas e divertia as crianças em festinhas de aniversário lançando balas ao ar e apanhando as com a boca, foi o homem que escreveu a obra intitulada O Homem Eterno, que levaria um jovem ateu chamado C.S. Lewis a tornar se cristão. Foi ele quem escreveu um romance intitulado O Napoleão de Nothing Hill, que inspiraria Michael Collins a liderar o movimento pela independência da Irlanda. E foi também ele o autor de um artigo no Illustrated London News que inspiraria Gandhi a liderar o movimento que pôs fim ao domínio colonial inglês na Índia. Esse foi o homem que, solicitado a escrever um livro sobre São Tomás de Aquino, pediu à secretária que retirasse uma pilha de livros de São Tomás da biblioteca, abriu o primeiro, folheou o do começo ao fim, fechou o e começou a ditar a obra sobre o santo teólogo. E, ao contrário do que esperaríamos, não lhe saiu um livro qualquer. Ninguém menos do que o renomado especialista em tomismo e Filosofia Medieval, Étienne Gilson, considerou uma obra-prima, uma síntese quase definitiva.
Apesar disso Chesterton é o escritor mais injustamente desprezado do nosso tempo. Talvez esta seja mais uma prova de que a educação é importante demais para ser deixada nas mãos dos burocratas do ensino, e de que a publicação de livros é importante demais para ser deixada nas mãos dos editores. Mas isso não desculpa que se tenha deixado de ler e estudar Chesterton, de reeditar amplamente os seus escritos e de mencioná-los com o destaque que merecem nas antologias de textos universitários. Os pensadores, os críticos e os comentaristas modernos acharam muito mais conveniente ignorar Chesterton do que fazê lo comparecer numa discussão, porque argumentar com Chesterton equivale a ser derrotado. Chesterton debateu de forma eloqüente com todas as variadas ideologias surgidas no século XX: o materialismo, o determinismo científico, o positivismo, a psicanálise, o relativismo moral, o agnosticismo invertebrado e tutti-quanti cruzasse o seu caminho. Além disso, combateu tanto o socialismo quanto o capitalismo, mostrando porque ambos têm falhado na promoção da liberdade e da justiça na sociedade moderna. Mas a que coisas ele era favorável? O que defendia? Defendia o homem e o bom senso. Defendia a fé, a esperança, a caridade e a beleza. E defendia a Cristandade, e particularmente sua fé Católica. Temas que não andam muito em voga nas salas de aula, na mídia ou no debate público. E é provavelmente por isso que ele é desprezado. O mundo moderno prefere escritores que sejam esnobes, que tenham idéias exóticas e bizarras, que glorifiquem a decadência, que discorram sobre o próprio umbigo, que ridicularizem o senso comum, que neguem a dignidade e que digam que liberdade não implica em nenhuma responsabilidade. Seja como for, existe uma desculpa mais óbvia para isso: Chesterton é demasiado brilhante, e por isso é difícil de encarar. Logo se um escritor se expressa tão claramente, corre o risco de escorrer pelo ralo. Mesmo que meça mais de dois metros e pese cento e quarenta quilos.

100 anos de "Ortodoxia"


Chesterton discutiu com muitos dos mais célebres intelectuais do seu tempo: George Bernard Shaw, H.G. Wells, Bertrand Russell, Clarence Darrow. Segundo os relatos da época, costumava sair vencedor dessas disputas. O mundo, porém, imortalizou os seus oponentes e esqueceu Chesterton, de modo que hoje só nos dão a ouvir um dos lados da argumentação e nos obrigam a aturar as heranças do socialismo, do relativismo, do materialismo e do ceticismo. A ironia disso é que todos os seus oponentes tratavam Chesterton com a máxima consideração e estima; Shaw, por exemplo, chegou a dizer: "O mundo não agradeceu o suficiente a Chesterton". Os seus escritos foram aplaudidos e elogiados por Ernest Hemingway, Graham Greene, Evelyn Waugh, Jorge Luis Borges, Gabriel García Márquez, Karel Capek, Marshall McLuhan, Paul Claudel, Dorothy L. Sayers, Agatha Christie, Sigrid Undset, Ronald Knox, Kingsley Amis, W.H. Auden, Anthony Burgess, E.F. Schumacher, Neil Gaiman e Orson Welles, para só citar alguns poucos. E T.S. Eliot afirmou que Chesterton "merece o direito perpétuo à nossa lealdade". Todo isso está registrado no livro "Ortodoxia", que a editora evangélica Mundo Cristão, gentilmente, ecumenicamente, caridosamente, relança num bela edição comemorativa de 100 anos para todos os leitores critãos, ou simplesmente livres-pensadores. Imperdível.


Aproveitem que está com preço promocional: R$ 16,92!... Eu já tenho o meu.

Santa dedução!!!!


Mas nem só de séria apologética, filosofia e teologia configura-se a literatura do polemista G. K. Chesterton. Ele também abordou isso de um ponto de vista divertido e, depois de Edgar Poe e Conan Doyle, decidiu criar o tipo de novela policial em que o genial investigador, longe de ser o esmiuçador sagaz, frio e raciocinante, era o Padre Brown, (na verdade o Padre Vicente O.F.M., seu amado confessor), um detetive humano, demasiado humano, que tinha os olhos lavados pela Fé e pelo colírio das lágrimas, de modo que conseguia, mesmo cochilando, descobrir os meandros da malícia criminosa mais pela compreensão sublime do que pela sagacidade mundana. Indispensável para todo e qualquer fã de romance policial, seja ele de que credo ou falta de credo for!... Aqui no Brasil você encontra quase todos os livros da série: A Inocência do Padre Brown, A Sabedoria do Padre Brown, O Escândalo do Padre Brown, A Incredulidade do Padre Brown e o Segredo do Padre Brown.
Num sebo ou livraria próximo de você.

domingo, 11 de maio de 2008

Palavras cantadas...

Maria, Maria

É um dom,uma certa magia

Uma força que nos alerta

Uma mulher que merece

Viver e amar

Como outra qualquer

Do planeta

Maria, Maria

É o som, é a cor, é o suor

É a dose mais forte e lenta

De uma gente que rí

Quando deve chorar

E não vive, apenas aguenta

Mas é preciso ter força

É preciso ter raça

É preciso ter gana sempre

Quem traz no corpo a marca

Maria, Maria

Mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha

É preciso ter graça

É preciso ter sonho sempre

Quem traz na pele essa marca

Possui a estranha mania

De ter fé na vida....


Feliz Dia das Mães

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Lady Frieza


A primeira vez que li Virginia Woolf tive uma péssima impressão. Sua prosa se parecia exatamente com ela: fria, diáfana, taciturna, anêmica, de um bom gosto excessivo, que transcendia o terreno literário para entrar no chique. Definitivamente, Virginia Woolf era uma literatura, um desafio, ou simplesmente uma pessoa para quem eu não estava preparado. E mesmo, hoje, quando quase tudo já foi devidamente relido e reconsiderado, ainda não sei como defini-la. O que me consola é que talvez ninguém saiba. E consta que a escritora detestava e evitava qualquer definição. No entanto, 67 anos após o seu suicídio, ela se encontra atada a definições de todos os tipos: modernista, teórico feminista, lesbian chic!... Mas não é para menos, estamos na nova idade das trevas onde um rótulo é tudo, e a teoria literária é mais lida do que a própria literatura. Porém como sou antipático a estereótipos acadêmicos, me limitarei à falar como leitor sincero e dizer que a literatura de Virginia Woolf é tudo o que se podia esperar de melhor em experimentação, inovação, abstração, embromação, delírio, faniquito e virtuosismo psicológico produzido até então pela língua inglesa no século XX, sem deixar, contudo, de dar continuidade a grande tradição literária deste idioma que vemos implícita através dos momentos cruciais, privilegiados e epifânicos dos seus cinco melhores romances: “Mrs. Dalloway”, “O Farol”, “As Ondas”, “Os Anos” e “Entre os Atos”. Em alguns momentos ela exagera, é verdade, erra a mão, parece drogada, e merecidamente pode ser encarada como a mais radical experimentalista da ficção do século passado - ao lado de James Joyce, mas sem o intelectualismo deste. Virginia buscava tão obsessivamente uma nova forma lírica para o romance, que acabou desenvolvendo com precisão inédita os recursos do fluxo da consciência e dos monólogos interiores, que constituíram a narrativa de seus livros.
Por isso, aos leitores agitadinhos, vou logo avisando que os romances de Virginia têm pouca ação - ''Sra. Dalloway'', por exemplo, resume-se a um passeio por Londres - espécie de motor para o desencadear de sensações que fazem da sua narrativa uma literatura ''radial'', como ela definia, em oposição a uma narrativa ''linear''. Esse mergulho radial e vertiginoso no inconsciente era, a bem dizer, lenitivo e veneno para sua fragilidade psicológica. Sabemos que uma adolescência traumática causou uma série de colapsos nervosos e internações que pontuariam toda a sua vida, e fariam dela uma esteta triste e desesperada. Todavia, Virginia alcançou o domínio de uma arte com características tão pessoais que a sua escola é composta somente por ela mesma – ainda que sobejem originais imitadoras mundo a fora: Katherine Mansfield, Marguerite Duras e Clarice Lispector, só para citar as melhores. Assim como nestas escritoras, o que caracteriza o texto de Virginia Woolf são os relatos de isolamento, loucura e amor perdido, que são verbalizados num complexo de imagens; não só um amontoado de imagens fraturadas, mas sim uma reunião harmônica de percepções e sensações. Virginia Woolf era duplamente dotada, quer como escritora quer como leitora, e talvez esse seja o segredo do seu grande gênio criativo - um gênio que sabia não apenas inventar uma forma de escrever, mas também uma nova forma de ler.

Um texto breve e triste...


Querido,

Tenho certeza de estar ficando louca novamente. Sinto que não conseguiremos passar por novos tempos difíceis. E não quero revivê-los. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Portanto, estou fazendo o que me parece ser o melhor a se fazer. Você me deu muitas possibilidades de ser feliz. Você esteve presente como nenhum outro. Não creio que duas pessoas possam ser felizes convivendo com esta doença terrível. Não posso mais lutar. Sei que estarei tirando um peso de suas costas, pois, sem mim, você poderá trabalhar. E você vai, eu sei. Você vê, não consigo sequer escrever. Nem ler. Enfim, o que quero dizer é que depositei em você toda minha felicidade. Você sempre foi paciente comigo e realmente bom. Eu queria dizer isto - todos sabem. Se alguém pudesse me salvar, este alguém seria você. Tudo se foi para mim mas o que ficará é a certeza da sua bondade. Não posso atrapalhar sua vida. Não mais.
Não acredito que duas pessoas poderiam ter sido tão felizes quanto nós fomos.
V."
Carta de suicídio de Virginia Woolf
remetida ao marido e editor Leonard Woolf.

Flush não é um cão qualquer. Mesmo antes de ser retratado por Virginia Woolf, já fazia parte da nobre linhagem de animais literários, que remonta a Argos, cão de Odisseu, ou Quincas Borba, cão homônimo de filósofo de Machado de Assis, ou ainda a trágica e sublime cadelinha Baleia de Graciliano Ramos. Flush pertenceu à poeta inglesa Elizabeth Barrett, posteriormente Browning. A esse cocker spaniel dourado, Barrett dedicou dois poemas. A ele, a poeta ainda deve os trechos mais realistas de "Aurora Leigh", seu grande romance em versos.
Na década de 40 do século 19, bairros aristocráticos como Mayfair desfrutavam a incômoda proximidade de cortiços e maltas de criminosos. Bastava uma ligeira distração das senhoras para que seus totós fossem sequestrados por esses vizinhos. Foi o que ocorreu com Flush, não apenas uma, mas três vezes. Numa das ocasiões, Barrett se viu obrigada a meter-se num cupê para negociar o resgate com os malfeitores.
Seria como se, hoje, uma socialite carioca aparecesse num Audi para palestrar com o chefão do tráfico no morro do Borel. Até então Barrett nunca pusera os pés num bairro miserável. Ali, num único cômodo, construído como um estábulo, viviam até três famílias. O tifo grassava. Dessa experiência nasceu o cortiço londrino que a autora forjou em "Aurora Leigh".
Woolf, por seu turno, narra o episódio do roubo de Flush, como vários outros da vida da escritora. Elizabeth Barrett já era famosa quando conheceu o poeta Robert Browning. Tinha 40 anos e vivia reclusa, sob o jugo do pai tirânico. Escreveu sonetos ao amado. Disse para o pai que se tratava de uma tradução sua para versos de Luís de Camões. O pai engoliu a lorota, e os poemas, talvez os melhores de sua lavra, ganharam o título de "Sonetos Portugueses". O casal foi depois obrigado a fugir para a Itália. A originalidade da narrativa de Virginia Woolf residiria em mostrar esses eventos pela ótica de Flush.

"As coisas se desprenderam de mim. Eu prolonguei certos desejos; eu perdi amigos, alguns para a morte... outros pela incapacidade de atravessar a rua."


Virginia Woolf