quinta-feira, 29 de novembro de 2007

O sarcasmo usa monóculo


Costumo definir Eça de Queirós como uma pedra atirada contra o nada, mas que em seu trajeto acabou atingindo tudo e todos. Primeiro atingiu a língua, a literatura e o romance, depois ricocheteou nas pessoas, em suas crenças, hábitos e opiniões. Nada escapou ao seu golpe ferino, feito de papel e palavras, tão duro quanto a sinceridade e mais pontiagudo que a irreverência.
José Maria Eça de Queirós realizou a estética esperada. Espatifou a forma clássica da frase e deu agilidade neurótica à linguagem - o que deixou todo mundo estarrecido e encantado. Diante de prosa tão sem osso, carne só, que atropelava a pesada e vetusta gramática da língua portuguesa, o temido lexicógrafo Cândido de Figueiredo, que tinha consultório de extrair crases mal colocadas e extirpar vírgulas suspeitas, entrou logo em desespero:
“Com esse Eça de Queirós não há sintaxe que agüente. Sai tudo de suas respectivas presilhas. Vou embora para o Brasil!...”
Eça sabia causar. Passava o monóculo medonho e impertinente a sua volta, na capital, nas províncias, nas serras minhotas e, com um riso fino, deixava que sua observação ácida recobrisse as coisas e os seres. Deu-lhes significado de declínio e de ridículo. Desfigurou-os, escolheu-os, e com eles, pintou um mundo aberrante que seria trágico se não fosse cômico. Sabe-se que o monóculo de Eça, que levava jeito de agudo estilete, abria clareira de terror em qualquer multidão. Ele era um psicólogo implacável a quem nada nem ninguém escapava. Todavia houve e ainda há críticos que insistem em deixá-lo aquém de Machado de Assis. Discordo. Ambos tinham o mesmo poder e capacidade de percepção, sendo que Machado era microscópico e Eça macroscópico. Noutros termos, Eça foi antes um crítico social do um psicólogo. Criticou e descreveu de preferência as exterioridades, os ridículos, os sestros e manias aparentes. Escritor caricaturesco, primou pelo exagero e a zombaria, e para tanto subverteu a linguagem, buscando a expressão fiel de suas idéias e sentimentos. Literariamente é descendente de Balzac, Flaubert e Dickens, dos quais herdou, respectivamente, a força criadora, a excelência estética e o sarcasmo corrosivo. Com estes mestres, Eça aprendeu a fazer de sua literatura uma tempestade, cujos raios eram os adjetivos. Suas páginas estão cheias de tal riqueza, palavras, frases que agem umas sobres as outras, para um resultado de expressão inédito. Por vezes, um vocábulo, a uma volta do pensamento, lá está, sozinho, esteio do trecho, estourando de significações. De outra vez, fora desse virtuosismo estranho, a responsabilidade expressiva distribui-se harmoniosamente: as orações se enfeixam, as imagens se amparam, cada palavra, nas dobras delicadas da frase, sustenta e compõe a sugestão do conjunto.
Por isso toda a sua obra é prima de fio a pavio, pelo menos para mim que até hoje não sei dizer qual o melhor livro, conto ou crônica por ele escrito. Tudo é bom, engraçado, agudo, desconcertante e fascinante. Com efeito, sugiro que os interessados leiam tudo o que puder e conseguir. Eu pensava já ter feito isso, mas meu amigo Emerson (ilustre freqüentador desta biblioteca) tirou-me do engano quando, para minha felicidade, descobriu num sebo algumas farsas e cartas raríssimas.
Tanto melhor, será algo mais a degustar.

Da série: qualquer semelhança não será mera coincidência!



A influência literária é uma vizinhança honesta, uma aproximação de outra inteligência, em que o autor descobre suas próprias virtudes, seus propósitos artísticos mais secretos, já realizados. Mas há um limite que a separa das regiões culpadas do plágio.
Eça de Queirós desde o seu tempo de moço, jornalista em Évora, apossando-se do pensamento de Vitor Hugo sem o citar, permitiu que a suspeita e acusação de plagiário o seguissem pelo resto da vida. Plágio é uma incriminação forte, vergonhosa e nem mesmo Shakespeare escapou dela. No entanto, é difícil não acatar esta imputação e tentar negar que esses senhores de enormes riquezas tiraram, de outros, um pequeno punhado.

Assim quando se lê em Salambô (de Flaubert): “Sés grillages d’airain qui le defendait em bas des scorpions”... encontra-se na Relíquia: “uma entrada mais nobre, em arco, com uma grade baixa, que a defendia dos escopiões”... Aí está um recurso de erudição, inacusável, um detalhe de arquitetura antiga, propriedade artística universal.

Mas lê-se ainda na Relíquia: “estas colinas que eu vira dias antes em torno à Cidade Santa, dessecadas por um vento de abstração, e brancas da cor de ossadas”... Encontra-se também na Vie de Jesus (de Ernest Renan): “La triste Judée, dessechée comme par um vent brulant, d’abstraccion et de morte”... Já aqui não é um dado de cultura, mas uma imagem descritiva de que Eça se apossou.

E para aqueles que resistam tanto quanto os que mais o amam, em acreditar nessa sombra na face do mestre, reserva-se uma cópia literal duma das mais belas imagens, de mais sugestão poética, escrita por Flaubert, está na Relíquia: “As lágrimas rolavam por sua face, tristes como a chuva por um muro em ruínas”... quando em Salambô já Flaubert havia posto: "et des pleurs coulaint sur as face comme pluie d’hiver sur une muraille en ruine”.

Não fiquem pasmos, se Shakespeare podia, Eça também. E sabem do que mais, se gritar pega ladrão não fica um meu irmão - todos os gênios fizeram isso!... E cá pra nós, pouco valem esses singelos furtos que nada corroem a glória daquele que tocou uma nova harmonia à velha língua portuguesa, ao romanceador de todo um país, criador único do maior friso de tipos populares de toda a literatura latina (segundo Harold Bloom). Eça de Queirós elevou-se a tal altura, que em confronto com as suas próprias riquezas, por ele acumuladas, estas jóias desonestas de sua arca merecem o mesmo olhar de benevolência risonha com que se olham as culpas iguais de outros grandes.

sábado, 24 de novembro de 2007

Solilóquios...


Quando saio tarde de casa e volto mais tarde ainda (leia-se, de madrugada), só lembro de Clarice: é bom sair pelo prazer de voltar!...

terça-feira, 20 de novembro de 2007


Um blog fútil, porém limpinho.

Da série: encontros inusitados!!!...


Em agosto de 1899, no final de uma ponte que se liga à esquina da rua de Ponthieu, em Paris, André Gide foi abordado por um mendigo que lhe pediu alguns francos para poder jantar. Era uma noite quente de verão, e a ocorrência teria sido absolutamente trivial se não fosse o fato do mendigo ser "alguém"!... Era um homem sujo e, apesar dos andrajos, extremamente elegante, e mendigava com uma ironia que era bastante incomum entre os indigentes, mas inteiramente característica de Oscar Wilde.
Gide custou a acreditar quando o viu e reconheceu. Ficou estarrecido, mas pelo que escreveu em seus diário não se sentiu comovido: "Eu não senti pena ou prazer em revê-lo, apesar de sua extrema gentileza. Ele era incapaz de seriedade, e todos os seus pesamentos, tiradas, sensações, todo o costumeiro brilho de sua conversa me chocaram como um artigo de luxo ostensivamente exposto num período de fome e luto. Sua soberba, em meio a tamanha decadência, era um espetáculo lamentável e incômodo. Dei-lhe o dinheiro e me afastei."
Oscar Wilde agradeceu a esmola com uma frase acutilante: “Não covém desdenhar o que já foi destruído. Mesmo assim, muito obrigado”
André Gide não ousou olhar para trás.

O Imoralista


André Gide era parisiense, filho único de uma rica família protestante, de quem recebeu uma educação severa, obedecendo a padrões rígidos de moral e disciplina. Essas circunstâncias o marcariam profundamente e se refletiriam em sua obra, quer sob a forma de submissão ou de revolta. Ascetismo e hedonismo, espiritualidade e sensualidade são os pólos através dos quais a escrita de Gide oscilou.
Quando a primeira guerra mundial terminou, os principais escritores franceses eram Paul Claudel, Paul Valery, Marcel Proust e André Gide. Os primeiros três destacavam-se cada um em seu gênero literário. Não se pode dizer que Gide fosse excelente em nenhum, mas seu espírito permeou todo o clima literário nos anos que se seguiram a guerra. Nos dias atuais, praticamente, nenhum dos quatro é lido.
A atual obscuridade de Gide, talvez, se explique porque era uma moralista, só que às avessas, ou seja, não como um modelo, mas como uma contestação. Sem querer, querendo, ele tornou-se porta-voz do novo mal-do-século, o símbolo da angústia pós-guerra. Gide acreditava que, na tentativa de se conformar com os padrões culturais, o indivíduo era obrigado a desenvolver uma personalidade falsa, que, o deformava e que precisava ser descartada. Isso deu muito pano para a manga da psicanálise e da contracultura que assolaria todas as expressões artísticas do século XX. E a posteridade acabaria acusando Gide de dilapidar séculos de tradição, desmerecendo a herança espiritual do ocidente.
Em parte isso é verdade, e em parte é um exagero. André Gide não tinha todo este poder, mas sabia fazer uma barulheira danada - sobretudo quando se sentia acuado. A sociedade configurava uma camisa (para não dizer saia) muito justa para seu espírito inquieto e confuso, por isso o que se pode afirmar de fato, é que sua obra literária era uma forma de querer ficar nu.
Gide tentava ser “normal”, mas nunca obtinha êxito, com efeito, clamava por rebeldia. Toda a sua trajetória pode ser acompanhada através do diário que ele começou a escrever aos 13 anos e só parou quando morreu. Nele vemos sua ascensão literária, as crises espirituais, as lutas consigo mesmo, e a imensa e terrível canseira que tudo isso lhe causava. Quem não tiver acesso aos diários (são de rara edição) pode ler qualquer um dos seus muitos romances e poemas, principalmente “Os frutos da terra”, “Os moedeiros falsos” ou “Os Subterrâneos do Vaticano”, que é a sua obra-prima e o único que eu li (gostei muito). Neles, André Gide, pós casamento fracassado e homossexualidade assumida, se consagraria como um dos maiores escritores do século passado. Em 1947 recebeu o prêmio Nobel de literatura e quatro anos depois, em 1951, faleceu em Paris, em decorrência de uma embolia pulmonar.
O mais interessante é que no final da vida, Gide passou a acreditar que a cultura precisava, para sobreviver, de uma tradição que lhe servisse de esteio. Depois disso o destino de André Gide foi ser considerado um cínico imoralista.
Leiam e façam seu próprio julgamento.

"Estamos ligados aos nossos atos como um fósforo à sua chama. Eles consomem-nos, é verdade, mas são eles que nos dão o nosso esplendor. E, se a nossa alma valeu alguma coisa, é porque ardeu com mais ardor do que outras".


André Gide

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Cecília em poesia e prosa...

No mistério do sem-fim
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,

entre o planeta e o sem-fim,
a asa de uma borboleta

Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou o sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade.(...) Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano.
Cecília Meireles

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Mais do que uma poeta: a poesia!


Não sei se vocês já notaram, mas Cecília Meirelles tem exatamente a cara dos poemas que escreveu!... Ou seria o inverso? Reparem no retrato, quem já a leu haverá de concordar comigo. Entre a poeta e sua poesia há uma similitude de feições e atitudes como só pode haver nas coisas geradas, e não criadas. Não diria que são como mãe e filhos – isso não seria uma definição precisa, além do que é bastante clichê – mas diria que são como emanações, como prolongamentos de seu ser, de sua beleza, suavidade e pasmo.
Ela tornou-se poeta muito cedo, acho que desde a infância, quando ficou órfã dos pais e foi morar com a avó. Aos 17 anos estreou parnasianamente com “Espectros”, poetando em versificações rigorosas, quase calculadas. A partir de 1922 aproximou-se das correntes modernistas através de ligações com os poetas católicos da revista Festa, sem todavia aderir efetivamente ao espiritualismo literário deles. A bem da verdade, Cecília, na qualidade de caldeirão poético, era “anti-aderente”. Nelas fervilhavam paradoxalmente elementos clássicos, parnasianos, simbolistas e modernistas, sem quem nenhum deles embotasse ou marcasse seu estilo que era categoricamente independente.
Digo independente porque nenhum rótulo pode grudar-se em Cecília Meireles. Ela é um dos poucos casos na literatura de língua portuguesa de “poesia pura e absoluta”. E essa pureza e absoluto poéticos residem no desprezo do material e do concreto, na ascese e perfeição formal. A sua temática é das mais amplas e profundas da nossa literatura moderna. A fugacidade do tempo, a precariedade do ser, a falta de sentido da existência, a vida vista como sonho (se não pesadelo), a insuficiência e os desacertos humanos, sua irremediável solidão – eis os ingredientes do lirismo delicado onde há uma constante penumbra de ceticismo e desencanto. Sua música é plangente, melancólica, dolorida, jururu – mas sem notas desesperadas, só tons penetrantes, agudos. Dos amigos católicos ela contraiu o devanear lírico, a abstração visionária, a fixação poética de um mundo imaterial, intemporal. E ainda certo misticismo dolente e vaporosa espiritualidade que conferem uma ressonância religiosa à sua dicção às vezes profética ou bíblica, como se fosse uma Santa Teresa D’Ávila que de santa não tinha nada.
Mas sabia fazer milagres verbais em metáforas inigualáveis do tipo:
a aérea franja de sua voz, o cheiro molhado do chão, sua boca de nata....” Quer erotismo mais elegante do que esse? Como Clarice Lispector, eu considero o lirismo de Cecília Meireles o mais elevado da moderna poesia de língua portuguesa. Nenhum outro poeta iguala o seu desprendimento, a sua fluidez, o seu poder transfigurador, a sua simplicidade e seu preciosismo, porque Cecília, só ela, se acerca da nossa poesia primitiva e do nosso lirismo espontâneo... A poesia de Cecília Meireles é uma das mais puras, belas e válidas manifestações da literatura contemporânea. E é exatamente por ser pura e bela que tem a cara dela.

Da série: encontros inusitados


Cecília Meireles foi a Portugal, para proferir conferências na Universidade de Coimbra e Universidade de Lisboa, em 1934. Um grande desejo seu era conhecer o poeta Fernando Pessoa, de quem se tinha tornado admiradora. Através de um dos escritórios para o qual trabalhava o poeta, conseguiu comunicar-se com ele e marcar um encontro. Esse encontro ficou fixado para o meio-dia, mas ela esperou inutilmente até as duas da tarde, sem que Fernando Pessoa desse o ar de sua presença. Cansada de esperar, Cecília voltou ao hotel e teve a surpresa de encontrar um exemplar do livro Mensagem e um recado do misterioso poeta, justificando que não comparecera porque consultara os astros e, segundo seu horóscopo, “os dois não eram para se encontrar”. Realmente, não se encontraram, nem houve mais muita oportunidade para isso, já que no ano seguinte Fernando Pessoa faleceu.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

AINDA


...sem assunto. Mas amanhã, ou depois, voltarei em grande estilo!... Acho.