quinta-feira, 21 de junho de 2007

Um blog sobre literatura e frio!

São 15h06 da tarde e o inverno acabou de começar.

O bruxo do Cosme Velho nunca envelhece!


Hoje é dia do aniversário de Machado de Assis, mas eu não quero falar dele recontando as contingências da sua trajetória. Todos já sabem da gagueira, da epilepsia e da pele escura. São detalhes comentados ad nauseam, e já nem interessam. Neste dia quero me limitar (embora também não seja preciso) a falar do seu gênio ilimitado, posto que gênio é uma coisa que faz muita falta hoje me dia.
E para saber desse gênio não é preciso muito, basta dizer que partindo da obscuridade de uma origem humilde e percorrendo sozinho a estrada do autodidatismo - ajudado por talentos excepcionais e uma vontade inexpugnável - Machado elevou-se a uma altitude literária jamais atingida por qualquer outro escritor local, quer seja de antes ou depois. Em vida provou de toda consideração artística, ouviu elogios de melhor e de maior, acumulou prestígio, foi presidente de academia. E se ainda hoje a crítica insiste em apontá-lo como o dono da pena mais expressiva da nossa literatura (com o acréscimo de ser o mais extraordinário contista do idioma), é porque não apareceu sucessor.
Ao contrário dos Ronaldinhos e Giseles, o raro interesse universal que este homem provoca não se fundamenta em passageiros dotes físicos, mas numa arte sublime que o uso jamais desgasta.O crítico inglês John Gledson afirmou categoricamente que sem Machado de Assis a literatura brasileira não seria o que é: quem vem aqui à procura de faroestes-caboclos logo se assombra quando o descobre. Foi assim com o crítico Harold Bloom (que imediatamente o incluiu no cânone universal), com Susan Sontag (que enxergou nele algo superior a Borges), com Salman Rushdie (que disse não parecerem livros escritos há cem anos, mas anteontem), e com todos os outros que ousaram folhear seus livros mágicos. E esquisitos!... Woody Allen disse que “Memórias Póstumas” foi o livro mais esquisito e fascinante que já teve a sorte de ler. Não mentiu. Todavia, não disse tudo, nem poderia. Aos olhos de quem propõe uma definição, o bruxo se transfigura num mundo de arte e humanidade tão rico que qualquer crítica vai se desfazendo como ilusões mal distinguidas na distância. É mágica: Machado sempre se antecipa aos nossos movimentos, e antes que possamos apontar-lhe uma falha, ele mostra em nós a fraqueza existencial, a angústia do tempo, da morte, da opção moral. E faz tudo isso com aquela narrativa original, sempre reticente, lacônica, que nunca afirma, apenas insinua. Uma narrativa fina e circunspecta que gentilmente procura o leitor para conversar.
No passado tentaram acusar-lhe de elitista, "estrangeiro", apolítico – (e até hoje um e outro voltam à carga), mas não é preciso ser um observador muito arguto para entender que quem nasceu para ser eterno não se atem a épocas ou datas.
O bruxo jamais envelhece!
Portanto, nestes tempos de leituras de auto-ajuda, o leitor poderia se ajudar muito mais e se surpreender (tenho certeza) com um pouco da mágica do único clássico notório de que dispomos.

Da série: Encontros inusitados!!!!


Numa tarde do ano de 1896, entrando num dos vagões do trem que ligava o Rio a Petrópolis, Machado de Assis sentou-se ao lado de um garoto de óculos, de mais ou menos 10 anos de idade, que aparentemente viajava sozinho. Machado não o conhecia, mas ele conhecia Machado das fotos e crônicas dos jornais. Com efeito, depois de trocarem cumprimentos, o garoto perguntou-lhe:
- "O senhor gosta de Camões?..."
- "Muitíssimo!" - respondeu o velho bruxo.
O garoto sorriu e, sem mais, começou a recitar uma oitava de Os Lusíadas que o mestre não lembrava. Machado ficou impressionado, pediu mais, o menino então recitou outra. E assim, no decorrer de toda a viagem, com a vozinha apagada, mas felicíssimo, o menino recitou para seu ídolo todos os cantos que conseguiu lembrar.
Quando acabou o trajeto, e ambos se levantaram para desperdir-se, Machado quis saber o nome daquele pequeno rapsodo. Todo vaidoso, e um tanto acanhado, o garoto respondeu:
- Eu me chamo Manuel Bandeira.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Mais do que um poeta: uma literatura!


É raro um país e uma língua adquirirem quatro grandes poetas em um só dia, mas foi precisamente o que ocorreu em Lisboa a 13 de jnho de 1888. Nesta data, dia de Santo Antônio, nascia Fernando Antônio Nogueira Pessoa, o maior poeta da língua portuguesa, e um dos maiores do século XX. Não duvidem, seu gênio era tão grandioso que foi incapaz de expressá-lo sozinho. E, além de grandioso, foi precoce: aos seis anos, após a morte do pai e do irmão caçula, Pessoa começou a inventar "heterônimos" — "personas" imaginárias para povoar um "teatro íntimo do eu". O garoto já trocava cartas com um correspondente fictício. Sua mãe casou-se novamente, e a família mudou-se para Durban, África do Sul. No Natal veio à luz um certo Alexander Search, invenção para quem Pessoa criou uma biografia, traçou o horóscopo e em cujo nome calmamente translúcido escreveu excelente poesia e prosa em língua inglesa, o que lhe valeu um prêmio da família real. Seguir-se-iam outros 72 personagens em busca de um autor. De início, eles tendiam a escrever na esteira de Shelley e Keats, de Carlyle, Tennyson e Browning.
Quando, porém, a poesia de Walt Whitman chegou aos ouvidos de Pessoa, seu gênio manisfestou-se e fez com que ele deixasse de ser poeta para se tornar uma sociedade de poetas invisíveis. A fissão em incandescência quadri-partida teve lugar num dia de março de 1914, e até hoje permanece um dos fenômenos mais notáveis da história da literatura. Ao rememorar o fato (numa carta de 1935), Pessoa fala de um "êxtase cuja natureza não conseguirei definir (...) aparecera em mim o meu mestre: Alberto Caeiro!..." Mas Caeiro não saltara à existência sozinho. Viera acompanhado de dois discípulos principais. Um era Ricardo Reis, o pomposo e clássico; o outro: "Bem, de repente, em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a "Ode Triunfal" de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem. Surgiu, então, uma "coterie" inexistente. Convidei todos à realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa".
Pseudônimos, "noms de plume", anonimato e toda forma de máscara retórica são tão velhos quanto a literatura. Os motivos são muitos. Eles se estendem desde a escrita política clandestina à pornografia, desde o ofuscamento brincalhão a sérios distúrbios de personalidade. Entretanto o caso de Pessoa permanece sui generis. Ele não tem nenhum paralelo próximo, não apenas por causa de sua estrutura quadri-partida, mas também por diferenças mercantes entre suas quatro vozes. Cada uma tem sua própria biografia e físico detalhados. Caeiro é loiro, pálido e de olhos azuis; Reis é de um vago moreno mate; e "Campos, entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo", como nos diz Pessoa. Caeiro quase não dispôs de educação e vive de pequenos rendimentos. Reis, educado num colégio de jesuítas, é um médico auto-exilado no Brasil desde 1919, por convicções monárquicas. Campos é engenheiro naval e latinista.
O inter-relacionamento dos três, seja na atitude ou no estilo literário, é de uma densidade e sutileza intrigante, a exemplo de seus vários laços de parentesco com o próprio Pessoa. O Caeiro em Pessoa faz poesia por pura e inesperada inspiração. A obra de Ricardo Reis é fruto de uma deliberação abstrata, quase analítica. As afinidades com Campos são as mais nebulosas e intricadas. "É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu, menos o raciocínio e a afetividade".
Campos era abusado e encrenqueiro, costumava escrever desaforadas para os amigos de Pessoa, e uma vez quase acabou seu noivado com a bobinha Ofélia.
O poeta e prêmio nobel OctavioPaz via Caeiro, Reis e Campos como "os protagonistas de um romance que Fernando Pessoa jamais escreveu". Pessoa não é entretanto "um inventor de poetas-personagens, mas um criador de obras de poetas", argumenta Paz. "A diferença é crucial". As biografias imaginárias, as anedotas, o "realismo mágico" do contexto histórico-político-social em que cada máscara se desenvolve são um acompanhamento, uma elucidação para os textos. O enigma da autonomia de Reis e Campos é tal que, vez por outra, eles chegam a tratar Pessoa com ironia ou desdém. Caeiro, por sua vez, é, como vimos, o mestre cuja brusca autoridade e salto para a vida generativa desencadeiam todo o projeto dramático. Paz distingue com admiração estes fantasmas animados, e diz que do jogo espectral dos heterônimos emerge uma poesia de primeira grandeza. Não atoa ele foi incluído entre os 20 principais escritores do canône ocidental pelo crítico americano Harold Bloom.
Jorges Luis Borges era tão fascinado por esses poetas imaginários que chegou a escrever-lhes cartas, que, obviamente, nunca foram respondidas. E Ítalo Calvino, num ensaio magnífico, brincou com a suposição de que na verdade era Fernando Pessoa o poeta imaginário criado pelos os outros três.
José Saramago foi ainda mais ousado, e no romance "O Ano da Morte de Ricardo Reis" nos conta como foi o dia em que Reis encontrou-se com o fantasma do seu criador, que já havia falecido há 16 anos. Pra mim é o melhor livro do Saramago, pois depois dele nada mais perceptivo foi escrito sobre Pessoa e suas sombras contrastantes. Uma homenagem merecida para quem em vida jamais foi reconhecido.
Fernando Pessoa morreu aos 47 anos, no dia 30 de novembro de 1935, em decorrência do alcoolismo. Dizem que, além da ex-noiva Ofélia e do poeta Mário de Sá Carneiro, quase ninguém acompanhou o enterro. Dias depois, Sá Carneiro escreveu uma nota num jornal de Lisboa dizendo que o maior poeta da língua portuguesa havia descido num caixão para a eternidade sem que ninguém soubesse quem ele era.

Um só poeta em pessoas três

Se as coisas são estilhaços,
Do saber do universo.
Seja eu os meus pedaços
Impreciso e diverso.
Eles foram e não foram.

Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro.

A Pedra do Reino: minhas impressões...


A badalada e tão esperada adaptação para TV do "Romance da Pedra do Reino", de Ariano Suassuana, estreou ontem de uma forma, digamos, impactante, e como tal me deixou um tanto atordoado. A bem da verdade, eu já esperava por isso, pois quem leu o livro sabe que é uma narrativa desafiadora. Com efeito, a dificil execução, não conseguiu (pelo menos no primeiro capítulo), a necessária comunicação instantânea e entendimento facil com o telespectador. Talvez um excesso de personagens perfilhados pelo narrador-protagonista, Quaderna, deixe o público mais voltado para o fascinante jogo visual minuciosamente elaborado pela imaginação fértil e pelo rigor estético do diretor. A propósito, tenho minhas dúvidas se a ousadia de Luiz Fernando Carvalho vai ser assimilada por um público mais afeito à dieta básica do veículo. É claro que esta é uma obra de exceção na TV brasileira, e como tal deve ser encarada. Por isso é importante deixar-se arrastar pelo primeiro "livro/episódio". Aquela loucura é a senha para uma viagem diferente e inesquecível.

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Senhora das Lembranças


A primeira mulher a ser eleita em 1980 para a Academia Francesa nasceu com o nome de Marguerite de Crayencour, no dia 8 de junho de 1903 em Bruxelas, filha de mãe belga e pai francês. Antes de morrer "no campo de honra das mulheres" de uma febre puerpural consecutiva a seus partos, sua mãe, Fernande de Cartier de Marchienne, recomenda que não se impeça a menina de se tornar religiosa se ela assim quiser. Ingressando na literatura, Marguerite acredita ter atendido o desejo de sua mãe. Michel, seu pai, que é mais do que um pai, um pedagogo, um confidente, um amigo, não é homem de fazer a filha ingressar em qualquer ordem que seja. Esse anticonformismo deixa-lhe como herança o gosto pela vida errante, ilustrado nesse adágio que ela nunca esquecerá: "Só se pode estar bem em outro lugar"; além de uma grande cultura, que divide com ela, assim como sua biblioteca.
Em 1919, ele financia pessoalmente o Jardin des Chimères (Jardim das Quimeras), poema dialogado que a filha compôs sobre a lenda de Ícaro. Marguerite tem então apenas dezesseis anos; ela nunca havia colocado os pés na escola; mas nem por isso deixará de obter o baccalauréat (certificado de conclusão do segundo grau). Juntos, pai e filha escolhem para ela um pseudônimo que é o anagrama de seu sobrenome: Yourcenar. Sua primeira obra publicada por uma verdadeira editora é Alexis ou o Tratado do Vão Combate, carta de ruptura escrita à mulher por um homem que prefere os homens, pudico pequeno texto que reforça, na linhagem do escritor André Gide, a liberdade das preferências sexuais.
Nesse meio-tempo morre seu pai, em 1929, e a jovem Marguerite vai conhecer os anos mais intensos de sua vida de mulher. Ela ama, escreve, perambula pela Europa, que se prepara para o cataclisma sem ter consciência disso. Esses anos serão sobretudo os anos de uma paixão impossível por um homem que não a ama e que, como Alexis, prefere os homens. Feux (1936) é produto dessa crise amorosa. Menos conhecido do público do que as obras-primas da maturidade, esse poema em prosa mistura a vida e seus símbolos do amor absoluto, a evocação dos grandes mitos de Antígona, Fedra ou Maria Madalena com o lamento pessoal do amor e da dor. Lindo, lindo, lindo.
Seu grande triunfo foi "Memórias de Adriano", publicado em 1951, uma autobiografia fictícia através da qual ela se consagra ao lado de Proust como a mestra e senhora da arte de recordar (ainda que por lembranças alheias). Marguerite Yourcenar já havia produzido e destruído, desde a idade de vinte anos, vários esboços desse romance ambicioso que faz reviver na primeira pessoa um imperador romano do século II e do qual em 1949 só restava um simples fragmento. Em alguns meses ela reescreve as memórias desse soberano esclarecido que estimulou as artes e melhorou as condições de vida dos escravos.
Através dele, ela sonha com um homem de Estado ideal, capaz de estabilizar a terra. E dá a esse grego de cultura e ambição, que protege as árvores ameaçadas, suas próprias preocupações ecológicas. Ela evoca um homem que constrói sua felicidade "como uma obra-prima", mas que a paixão pelo belo Antinous e a dor de sua perda vão transformar numa vertigem de imortalidade a glória do ser amado. Ela divide com ele uma sabedoria inspirada nas doutrinas orientais que consiste em se preparar para a própria morte, em perceber o seu perfil, e finalmente entrar nela "com os olhos abertos". Traduzido, elogiado e comentado, Memórias de Adriano obtém um sucesso mundial.
A Obra em Negro, publicado dezessete anos mais tarde, durante os acontecimentos de maio de 68 na França, é também fruto de uma longa gestação (é o meu predileto). Reescrito a partir de uma primeira novela publicada em 1934, esta é "em duas palavras a história de um homem intelectual e perseguido; isso se passa por volta de 1569 e poderia ter se passado ontem, ou se passar amanhã". Seu herói fictício, Zenon, filósofo, médico e alquimista do século XVI, possui mais realidade para sua criadora do que muitas criaturas de carne e osso. Yourcenar conta que conversava com Zenon todas as noites, e até pedia conselhos a ele.
Porém, seu projeto mais ambicioso, esse também inspirado nos sonhos de sua adolescência, será concretizado nos três volumes do Labirinto do Mundo, memórias de um gênero novo onde a escritora explora sua filiação e a história de seus ancestrais e pais. Os dois primeiros volumes fecham-se, como duas conchas, sobre a visão de uma pequena Marguerite de alguns meses que dorme sobre os joelhos de sua ama. No terceiro tomo ela mal chega à puberdade. Publicado a título póstumo, este último não será terminado.
Antes de morrer, no dia 17 de dezembro de 1987, na sua ilha americana, ela voltou a viajar, a "dar a volta à prisão", na companhia apaixonada de um jovem americano de trinta anos, Jerry Wilson. Quando ele morre prematuramente de AIDS, ela não tem mais forças para continuar sozinha por muito tempo, ela que gostava de dizer que só se morre de desgosto. Ela havia escrito profeticamente na juventude: "Solidão... Eu não acredito como eles acreditam. Não vivo como eles vivem. Não amo como eles amam... Mas morrerei como eles morrem."

Quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobreviveu na memória humana.


Marguerite Yourcenar

quarta-feira, 6 de junho de 2007

A Consciência do Mundo

Se houve no século XX um escritor que personificasse a imagem romântica do gênio ou artista literário, esse foi Thomas Mann. Ser artista é uma missão no sofrimento. É querer arrancar o mundo da inconsciência, sabendo ao mesmo tempo que sem ela a beleza não existiria. E é esse paradoxo que provoca a arte como consciência do mundo. Em Mann, o espírito e a consciência que o fazem artista também não o deixam viver a felicidade dos que ele observa. É como se nele houvesse uma contradição entre ser artista e viver.
Parece um exagero de sensibilidade, eu sei. Mas há uma explicação.
Thomas Mann nasceu no dia 06 de junho de 1875, na cidade livre de Lübeck, que, como Hamburgo e Bremen, mantinha a sua soberania no interior do II Reich alemão. O pai era um próspero comerciante, que veio a ocupar vários cargos públicos, incluisve o de senador, e a mãe, a belíssima Júlia da Silva Bruhns-Mann, brasileira, nascida em Parati, era filha de um alemão radicado no Brasil e de uma brasileira de origem portuguesa. Thomas é o segundo filho. O mais velho, Heinrich, virá também a ser um escritor de talento. Seguem-se duas irmãs, Júlia e Carla - ambas irão suicidar-se porque queriam ser atrizes e os pais não deixaram- e um irmão, Viktor Mann, autor da crônica familiar "Wir Waren Fünf" ("Éramos Cinco").
Embora fossem uma família estável e aparentemente comum, os Mann não eram felizes. Tudo neles era uma aparência. As relações eram pouco sinceras e, não raro, fundamentadas em sentimentos perversos. Heinrich, por exemplo, desejava ardentemente a irmã Carla (como revelam as cartas trocadas entre ambos). Dona Julia era uma mãe dominadora e, ao mesmo tempo, uma esposa pouco fiel. E Thomas, já na juventude, vivia o terrível conflito da bissexualidade: amava a namorada, mas era apaixonado pelo colega da escola de música!... Enfim, uma família quase normal.
Os conflitos que essas peculiariedades geravam, foram atenuados com o passar dos anos, quando cada um tomou seu rumo na vida, mas não sem antes deixar-lhes marcas profundas. Marcas que encontrariam expressão numa grande obra literária, sobretudo, na de Thomas Mann.
Ele estreou na literatura aos 19 anos, com uma novela de desilusão amorosa ("Queda") que lhe abriu de imediato as portas para os círculos artísticos de Munique. Dois anos depois surge a narrativa "O Pequeno Senhor Friedmann", que pode ser considerado o seu primeiro trabalho realmente significativo, pois é nele que já se percebe a existência de um conflito entre o espírito e a vida: a condição trágica que é sua marca e que dá o tom de clássicos como "Morte em Veneza", "A Montanha Mágica", "José e seu Irmãos", "Doutor Fausto" e "Os Bruddenbrooks" (retrato da decadência familiar). Por uma razão ou outra (por velhice, por deformidade, por doença, por repressão, por sensibilidade ou por talento artístico), os personagens de Mann se vêem fora do mundo, mas com a capacidade de ver o mundo de fora. É a margem que lhes garante a distância, o foco e a consciência que os outros, que "vivem simplesmente", não podem ter. No caso do artista, é a alteridade que lhe permite apreciar a beleza do mundo que o cerca. É a condição da sua arte: para ver a vida, é preciso estar fora dela. Para criar a beleza, é preciso desejá-la.
E de tanto desejar Mann, acabou criando beleza - provavelmente, os romances mais belos, ricos e monumentais já escritos no século XX.
Talvez isso explique porque hoje ele é pouco lido. A despeito de sua grandiosidade, a influência de Thomas Mann sobre escritores alemães do pós-guerra é paradoxalmente reduzida, se lembrarmos nomes como o de Franz Kafka, com incontáveis seguidores mais ou menos epigonais (e não só na Alemanha), Robert Musil, com o romance "O Homem sem Qualidades", ou ainda Alfred Döblin, que tem em Günter Grass um discípulo confesso. Seria a extraordinária envergadura enciclopédica dos romances de Mann, a incomparável erudição, que gera por vezes a impressão de monumentalidade extemporânea, como se "2.500 anos de cultura", para glosar uma sarcástica observação de Brecht, mirassem o leitor "de cima para baixo"?
Não sei. Só que tenho muito medo de que Mann caia no esquecimento. Uma vez ele disse que, hoje em dia, um romance precisa ser mais que um romance: - O romance do século XX tem que ser, ao mesmo tempo, romance, ensaio, tratado científico, e também obra de história e reportagem.
Sua obra é então tudo isso. É muito mais do que um belo romance: é o próprio Mann, é a sua consciência do mundo.

Imagens de um cotidiano de livros e leitores...


Não do nosso!... Essa foto foi tirada no metrô de New York!...
Aqui?... Quem sabe um dia.